ESTUDIOS  
OS ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL[1]

Paulo Affonso Leme Machado
[2]



1 - A ALTERAÇÃO E A SUPRESSÃO DOS ESPAÇOS PROTEGIDOS SOMENTE ATRAVÉS DE LEI.
 

Diz a Constituição Federal:

Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:
III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justificam sua proteção
.” (art. 225, §1º)

    
A Constituição inova profundamente na proteção dos espaços territoriais como, por exemplo, unidades de conservação, áreas de preservação permanente e reservas legais florestais. Poderão essas áreas ser criadas por lei, decreto, portaria ou resolução. A tutela constitucional não está limitada a nomes ou regimes jurídicos de cada espaço territorial, pois qualquer espaço entra na órbita do art. 225, § 1º, III, desde que se reconheça que ele deva ser especialmente protegido.

    O inciso em análise é auto-aplicável, não demandando legislação suplementar para ser implementado, sublinhando-se que nele não está inserida a expressão “na forma da lei”.

    O texto constitucional preceitua que o poder público deve definir em todas as unidades da Federação espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos. Definir[3] os espaços territoriais compreende localizá-los. Aí começa a proteção constitucional, não se esperando que se implantem quaisquer acessórios, como cercas ou casas de guardas.

    O Professor José Afonso da Silva – um de nossos maiores constitucionalistas – ensina que “nem as florestas
e demais formas de vegetação de preservação permanente, ex vi legis,  indicadas no art 2º, nem as do patrimônio indígena a elas equiparadas, mencionadas no § 2º do art. 3º, poderão ser suprimidas, nem total, nem parcialmente.
Mas não é apenas a técnica legislativa que nos leva a essa conclusão. A ratio legis, especialmente, é que orienta tal interpretação, pois seria uma inutilidade a lei reconhecer florestas de preservação permanente, só por efeito dela,
ao mesmo tempo em que se admitisse a possibilidade de sua supressão total ou parcial, ainda que em condições restritas”[4].

    Não se pode ter a ilusão de que esses espaços tornaram-se perenes pelo sistema constitucional ora introduzido,
mas, sendo a alteração e a supressão somente através de lei, abrem-se tempo e oportunidade para que os interesses pró meio ambiente façam-se presentes, perante os parlamentares.  Como se sabe o procedimento de elaboração dos atos do Poder Executivo – decretos, portarias e resoluções - não prevê  um debate público e um lapso de tempo antes
da sua edição. Não se quer sobrecarregar o Poder Legislativo, mas, sem uma intensa participação democrática,
as áreas protegidas serão mutiladas e deturpadas ao sabor do imediatismo e de soluções demagógicas, às vezes intituladas como de interesse social ou de interesse público. 



2 -  OS POSICIONAMENTOS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

    A Constituição Federal, sob o aspecto aqui tratado, já foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, por duas vezes. No primeiro caso[5], foi deferida a medida cautelar, suspendendo decreto do Governador do Estado de São Paulo. O decreto paulista[6]possibilitava a modificação de parque estadual somente com Estudo Prévio de Impacto Ambiental, sem que houvesse lei autorizando a modificação. Oportuno citar-se o voto do relator Min. Moreira Alves: “Tendo em vista
a possibilidade de danos ecológicos e de difícil reparação e, por vezes, de reparação impossível, está presente no caso
o requisito do periculum in mora, que, aliado à relevância jurídica da questão, justificam a concessão da liminar”.


    O segundo caso, trata da ADIN promovida pelo Procurador Geral da República, visando a declaração da inconstitucionalidade do art. 1º da Medida Provisória n. 2166-67/2001, na parte em que alterou o art. 4º, caput,  e §§ 1º a 7º da Lei 4.771/1965 (Código Florestal)[7]. Como questão central do pedido foi alegada a impossibilidade de a lei delegar ao administrador ou a ato normativo infra-legal o poder de supressão ou de alteração das áreas de preservação permanente, “permitidas somente através de lei” (225, §1º, III da Constituição). Liminarmente o Presidente do STF concedeu a medida, que  não foi referendada pelo plenário, por voto da maioria. Consta da ementa do julgado que somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente protegidos qualificam-se como matérias  sujeitas ao princípio da reserva legal.

    O posicionamento da maioria dos juízes do STF, de que somente a mudança do regime jurídico é que deve ser feita mediante lei, diminui o alcance da proteção dos espaços territoriais a serem protegidos. O Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios passa a ter o controle, praticamente exclusivo, da vida e da morte dos parques, reservas biológicas e áreas de preservação permanente.

    O que foi escrito e pensado pelos Constituintes é diferente do que foi decidido pelo STF “data maxima venia”. Acentue-se que a Constituição, ao querer que o Poder Legislativo participe ativamente do controle dos espaços ambientais importantes, continuou em sua linha de harmonia desse poder com os outros poderes constituídos.



3- A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O CONTROLE DE ATIVIDADES PELO PODER LEGISLATIVO

    Estão previstos na Constituição Federal, outros casos de controle de atividades mediante lei, como: “as usinas com reator nuclear deverão ter sua localização definidas em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas” (art. 225, § 6º); “aprovar iniciativas do Poder Executivo referentes a atividades nucleares”, “autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de recursos minerais” e “aprovar, previamente, a alienação ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares” (art. 49).

    Não há, também, nesses casos nenhuma inversão constitucional de competências. O que há é o compartilhamento
de funções visando construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, conforme o art. 3º
da Constituição Federal. A independência dos Poderes, prevista no art. 2º da Carta Maior, não significa ausência
de cooperação ou de entendimento, isto é de harmonia, nas ações compartilhadas. Os Poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário não são fechados ou estanques e, por isso, tanto o Executivo submete a nomeação de chefes de missões diplomáticas ou de diretores do Banco Central à prévia concordância do Senado Federal, como o Judiciário depende
da aprovação prévia do Senado Federal para os integrantes dos tribunais superiores.  O múltiplo controle de ações potencialmente danosas ao meio ambiente mostrará a prática de maior transparência e do exercício do direito
à participação na busca de proteção dos bens ambientais indispensáveis.


    Razoável e constitucional que o Ministério do Meio Ambiente, através do IBAMA, os órgãos ambientais estaduais
e municipais tenham o desprendimento de co-participar do procedimento de autorização de atividades em APPs com
o Congresso Nacional, não querendo agir com exclusividade nesse campo. O Poder Executivo, nas suas três esferas, preparará o posicionamento do Legislativo ao fazer elaborar o estudo prévio de impacto ambiental. A presença
do Legislativo na gestão da APP deve visar uma maior uniformidade das decisões, fazendo com que a norma geral federal (art. 24, § 1º CF), inserida no Código Florestal (art. 2º) seja continuamente respeitada.




4- CONVENÇÕES INTERNACIONAIS E CONTROLE LEGISLATIVO DE ESPAÇOS TERRITORIAIS

    A redação do art. 225, § 1º, III da Constituição Brasileira foi fiel à Convenção para a proteção da flora, da fauna e das belezas panorâmicas naturais dos países da América, assinada e ratificada pelo Brasil[8], que diz: “Os Governos contratantes concordam que os limites dos parques nacionais não serão modificados e que nenhuma de suas partes será desafetada sem a intervenção da autoridade legislativa”. (art. 3º). Não se pode deixar de apontar que essa Convenção não foi levada em conta na ADIn 3540/2005.

    Além da Convenção de Washington/1940, a Convenção Africana sobre a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais/1968[9] e a Convenção Africana sobre Recursos Naturais, Meio Ambiente e Desenvolvimento/2003[10] preconizam a prévia autorização legislativa quando se pretenda alterar espaços territoriais protegidos.



5- A DEFESA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE E O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

    Sem as florestas nas bordas dos cursos de água e sem que as nascentes tenham um envoltório verde secarão
os nossos rios. Sem  florestas nas encostas das montanhas, haverá desmoronamentos, povoados ou bairros serão destruídos e as pessoas morrerão. O que é óbvio precisa ser dito – sem água e sem solo adequados não se tem desenvolvimento econômico. O Arquipélago de Cabo Verde é um triste exemplo da carência de águas causada pelo desmatamento de áreas de preservação permanente[11].


    No texto do voto do ilustre Ministro Relator da ADIN (Medida Liminar) 3540/ 2005– Juiz por quem tenho imenso apreço,  menciona-se que algumas obras de interesse econômico estariam com seu licenciamento ambiental retardado em razão da espera da solução do problema exposto. Como exemplo, foi citada a implantação do gasoduto Urucu-Porto Velho.

    O controle legislativo dos espaços ambientais importantes, como as áreas de preservação permanente, não visa impedir as atividades econômicas. Mas, neste caso, põe-se à prova a aplicação ou não das funções social e ambiental da propriedade, previstas no art. 170, 182 e 186 da Constituição Federal. A ponderação de interesses, no caso em tela, aponta que o interesse ambiental não pode ser menosprezado.

    Somente poucos espaços territoriais é que estão submetidos ao regime do art. 225, § 1º, III da Constituição Federal. Vale dizer que a maioria dos espaços territoriais do Brasil não necessita de um controle mais apurado ou mais intenso.
A solicitação de um pedido de autorização legislativa não irá paralisar o desenvolvimento econômico do país.
Não se nega que haverá uma espera maior para o deferimento ou indeferimento de pretendidas atividades em áreas especialmente protegidas. Essa demora, contudo, é necessária para uma maior reflexão e a busca de soluções viáveis do ponto de vista ecológico e econômico, que devem estar contidas no planejamento e no estudo prévio de impacto ambiental. Destaque-se que a pressa ou a precipitação no licenciamento de atividades em áreas de preservação permanente ou de outras áreas especialmente protegidas tem causado um desenvolvimento não sustentado.




6 - PROIBIÇÃO DE QUALQUER UTILIZAÇÃO QUE COMPROMETA A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS QUE JUSTIFICAM A PROTEÇÃO DOS ESPAÇOS TERRITORIAIS

    A utilização dessas unidades de conservação e/ou áreas de proteção ambiental só poderá ser feita de modo que não comprometa a totalidade dos atributos, que justificam a proteção desses espaços. A Constituição foi explícita ao vedar toda forma de utilização que fira qualquer atributo do espaço territorial protegido. E vemos que foi necessária a previsão constitucional, pois recentemente tentou-se transformar uma via interna de comunicação do Parque Nacional de Iguaçu em estrada de rodagem, tendo a tentativa – apoiada por forças poderosas – sido obstada pelo Poder Judiciário, através da ação civil pública.

    Ao dizer a Constituição “vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justificam sua proteção”, a dimensão da vedação  de utilização não ficou unificada para todos os tipos de espaços territoriais protegidos.  Conforme o tipo de área haverá uma justificativa para a sua proteção. As características de cada tipo é que farão surgir o regime de proteção para esse espaço territorial, ficando proibida “qualquer utilização” que comprometa
a integridade das referidas características ou atributos. Veda-se a utilização para não fragmentar a proteção do espaço
e para não debilitar os “componentes” do espaço (fauna, flora, águas, ar,  solo, sub-solo, paisagem) , isto é, o espaço territorial fica integralmente protegido conforme o seu tipo legal. Não se protege um ou outro atributo, mas todos ao mesmo tempo e em conjunto.



CONCLUSÃO:

Não basta um carinho pelo meio ambiente praticado de modo genérico e difuso para que as áreas de preservação permanente continuem a existir. Uma proteção banal representa a perda dessas áreas. Não há uma meia proteção que salve essas áreas. Essas árvores e esses pedaços de chão  merecem ser não só amados como venerados por todos.
A Constituição da República é o documento que deve formar, estruturar e dar o rumo para os que aqui nasceram ou que aqui residem. Assim, quanto à área de preservação permanente – APP, cumpra-se a Constituição do Brasil, sem subterfúgios e na sua totalidade.



                                                                                                             INTERESSE PÚBLICO – Ano 8, n. 39. p. 13 -19. set/out. /2006.



NOTAS

[1] Palestra no painel de abertura do seminário Nacional: Restauração de APP. Promoção do Ministério do Meio Ambiente. Brasília 12 de julho de 2006.

[2] Professor de Direito Ambiental na Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP. Prêmio Internacional Elizabeth Haub (1985). Professor na Universidade Estadual Paulista –IB – Campus de Rio Claro (1980-2004). Pesquisador na Universidade de Louisiana – USA (1985).  Professor Convidado na Universidade Quebec em Montreal - Canadá (1994). Professor na Universidade da Córsega – França (2001), Professor na Universidade de Lyon III – França (2003). Professor Convidado na Universidade de Limoges - França (1986-2003). Vice-Presidente do Centro Internacional de Direito Ambiental Comparado – CIDE.

[3] MACHADO, Paulo A L. Estudos de Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros,  1994, p. 131.

[4] SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo. 5ª ed Malheiros, 2004, p. 174.

[5] Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIn 73-0-SP. Requerente:  Procurador Geral da República e  requerido:  Governador do Estado de São Paulo. Rel. Min. Moreira Alves. Votação unânime. Julg. em 9.8.1989 (DJU 15.9.1989).

[6] Decreto n. 29.762 de 20 de março de 1989, que acrescentou parágrafo único ao artigo 24 do do regulamento aprovado pelo decreto n. 25.341 de 4 de junho de 1986    (o qual dispõe sobre parques estaduais).

[7] ADIN (Medida Liminar)– 3540 – Relator Min. Celso de Mello. Votaram, com o Relator, pela derrubada da liminar, os Min. Nelson Jobim, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Sepúlveda Pertence. Vencidos os Ministros Carlos Britto e Marco Aurélio. Ausentes Gilmar Mendes e Carlos Velloso. Plenário, 01/09/05. Acórdão, DJ 03.02.06.

[8]
Washington, 12.10.1940 e entrada em vigor para o Brasil em 26.11.1965. Recueil des traités multilateraux relatifis à la protection de l´environnement. Nairobi, Kenya.  Programme des Nations Unies pour l´ Environnement. p. 3 e 61. 1982. (minha tradução).

[9]
Adotada em Alger, aos 15.9.1968 e em vigor em 9.10.1969. Recueil des Traités Multilatéraux relatifs à la protection de l´environnement. Éditeur: Alexandre Charles Kiss. Nairobi:Programme des Nations Unies pour l´Environnement. p.23 e 199. 1982.

[10] Adotada em Maputo, aos 11.7.2003.

[11]
O Autor foi consultor da FAO em Cabo Verde, em 1992.